Surdez e Identidade

“Há séculos, discute-se o significado da identidade. Recentemente, o tema vem se mostrando ainda mais relevante, dada a atuação de movimentos sociais que incluem não apenas os grupos de imigrantes, mas também as novas percepções sobre a diversidade cultural dentro de um contexto mundial globalizado no qual a troca de informação em muito expandiu com os novos meios de comunicação” (Irene W. Leigh, 2010, p.195)

Com esssa citação Irene W. Leigh abre capítulo dedicado ao tema “identidade da comunidade surda” no recém lançado Deaf Studies Language, and Education – vol. 2, da Oxford University Press, 2010. A autora faz observações muito interessantes. Vou comentar alguns pontos que me chamaram a atenção. Em 2003, relata Leigh, foi cunhado a expressão “deafhood” que poderia ser traduzida como “surdeidade”. Surdeidade é a consciência de ser uma pessoa que não ouve, ou ouve com dificuldade, usa língua de sinais e vive em mundo em que o som é componente impositivo. A identificação da surdeidade como traço pessoal e comportamental é fator de união entre pessoas que se comunicam e comungam valores da vida social e da cultura surda, como surdos. Se pensarmos a história da surdez – indicação interessante –, veremos que a expressão “cultura surda” já foi vista como uma dádiva, como uma doença, como uma punição ou como um desvio moral a ser corrigido. Hoje, a identidade da cultura surda tem buscado caminhos mais cooperativos e integrativos. Mas, não é fácil.

Estima-se que apenas 5% das crianças surdas tenham os pais surdos. Isso significa que a identidade comunicativa e relacional entre essas crianças e seus irmãos, primos, demais familiares e colegas de escola desde muito cedo é diferente. Diante disto, há reações diversas: ora nega-se, esconde-se, buscam-se soluções adaptativas e corretivas; ora reconhece-se, discute-se, valoriza-se e – e esse é o ponto mais interessante – assume-se uma vida bicultural e bilíngue. O surdo tem uma deficiência que não o inibe ou o expõe em um número enorme de situações e, ao mesmo tempo, o autoriza a participar de uma comunidade de pessoas que se expressam em língua de sinais. Imaginemos que, quando a gente vê um surdo bilíngue no cinema, nada nos leva a perceber que ele seja surdo, salvo se prestarmos atenção na sua dinâmica de leitura do leteiro, e por aí vai. Um cadeirante e um bengalante, esses têm sua deficiência de locomoção reconhecida no movimento do corpo e pelo equipamento que usam. Nesse caso, não existe uma bicorporalidade possível, mas a urbanização, a arquitetura de desenho universal e uma apropriação estética mais abrangente gerariam maiores oportunidades para que esses tenham melhor integração social.

No mesmo compêndio de artigos, outros estudos apontam para a irresponsabilidade de se associarem dificuldades na aprendizagem às desabilidades físicas, visuais ou auditivas como se essas fossem geradas “naturalmente” pelas primeiras. Resulta disso: recusa de alunos, desconsideração das orientações para a integração de alunos com NEE (Necessidades Educacionais Especiais), descompromisso com o tema e, por vezes, agressividade. Tive contato com relatos de alunos universitários surdos que impressionam. Em um deles, o professor deu ao aluno surdo o seguinte ultimato: ou aprende a falar (imagino que ele tenha pensado na oralização) ou não assiste mais à aula. Em outro caso, que é até engraçado, o professor suavemente lançou-se entre a intérprete e a aluna e esbravejou em ataque didático interativo empolgante: – Pára de olhar pra ela; prest’enção na aula; olha pra mim!

Se olharmos à nossa volta, veremos que as IFES e as IES ainda fazem pouco nesse sentido. Tudo se passa como se fosse uma questão secundária e que atrapalhasse a “verdadeira função da Universidade”. Em grande parte o tema é negado e os conflitos abafados em função, alega-se, do muito que já se faz por “eles”. Da mesma forma, o espaço ínfimo cedido pela impressa para as publicações em Braille e as “janelinhas” para a interpretação em LIBRAS são prova disso. Mas avanços têm sido obtidos. Isso é bom.

Pedro Perini-Santos, prof.